Revisitando o Estatuto da Criança e do Adolescente (I)

Por

Mirtes Cordeiro*

Em 24.08.2020

Diante das manifestações públicas oportunistas, agressivas, demagógicas e obscurantistas promovidas na última semana por determinados políticos e “grupos religiosos” contra o aborto legal de uma criança de 10 anos, entendo que é necessário revisitar o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), para que se possa reagir diante das situações de violências, às quais sistematicamente são submetidas grande parte das crianças brasileiras.

O Estatuto da Criança e do Adolescente foi criado em 1990, num momento especial de redemocratização do País, após a aprovação da Constituição Brasileira em 1988, incorporando a Doutrina da Proteção Integral, em contraposição à doutrina da situação irregular, até então admitida pelo Código de Menores.

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los à salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. ” (art 227 da Constituição).

A nova doutrina denominada de Proteção Integral, propõe que a família, a sociedade e o Estado sejam obrigados a propiciar às crianças e aos adolescentes o respeito a todos os seus direitos fundamentais de cidadãos e de pessoas em desenvolvimento.

Segundo conceito muito bem elaborado por ANTÔNIO CARLOS GOMES DA COSTA  (Diretor Executivo da Fundação Centro Brasileiro para a Infância e Adolescência), a referida doutrina “afirma o valor intrínseco da criança como ser humano; a necessidade de especial respeito à sua condição de pessoa em desenvolvimento; o valor prospectivo da infância e da juventude, como portadora da continuidade do seu povo e da espécie e o reconhecimento da sua vulnerabilidade, o que torna as crianças e adolescentes merecedores de proteção integral por parte da família, da sociedade e do Estado, o qual deverá atuar através de políticas específicas para promoção e defesa de seus direitos”. (­ Estudos Jurídicos ­Sociais; Ed. Renovar).

O estatuto se fundamenta também em vários documentos que propõem ao mundo novas recomendações e acordos sobre a garantia dos direitos humanos e que regulamentam as relações entre as nações, como a Declaração de Genebra, de 1924, a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948 e o Pacto de Sam José da Costa Rica, de 1969.  Sua elaboração foi precedida de ampla mobilização da sociedade civil e contou com a participação de vários segmentos comprometidos com a defesa e proteção da criança, como movimentos sociais de defesa da criança, juristas, religiosos, ONGs e organismos internacionais.

O Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) prestou grande apoio ao processo de elaboração e implantação do ECA e considera o Brasil como um grande parceiro no processo de consolidação da Convenção sobre os Direitos da Criança e do Adolescente, tendo ratificado a Convenção em 24 de setembro de 1990.

A prioridade absoluta significa que crianças e adolescentes têm preferência em relação a qualquer outra pessoa no que se refere, por exemplo, ao atendimento por serviço ou órgão público de quaisquer dos poderes, às políticas sociais públicas e à destinação de recursos públicos para a proteção da infância e da juventude.

Portanto, a Proteção Integral institui a responsabilidade solidária entre família, sociedade e estado na garantia dos direitos dessas crianças, inclusive constitucionalmente, caso a família possa falhar nas suas responsabilidades.

As políticas de atendimento devem ser executadas pela união, estados e municípios, de forma integrada, sempre obedecendo a prioridade absoluta e a sociedade civil é convidada a participar efetivamente, obedecendo os princípios democráticos da legislação vigente, através da constituição os Conselhos Estaduais e Municipais da Criança e do Adolescente e dos Conselhos Tutelares, estes devidamente eleitos através de escrutínio monitorado pelos tribunais eleitorais e ministério público. Para Coordenação Nacional e elaboração das diretrizes a serem consideradas pelas políticas públicas há o Conselho Nacional, o CONANDA.

“O ECA preocupou-­se com os direitos fundamentais garantidos pela CF e desceu a detalhes na sua regulamentação. Assim, visou a proteção integral dos menores, que tem início já na fase gestacional, com a proteção e tutela da mãe, seguindo o menor ao longo de seu desenvolvimento até chegar a vida adulta. Estabelece-­se, pois, na área de saúde, as garantias dos exames gestacionais e do teste do pezinho. Além disso, garante-­se a educação pública e gratuita, a proteção ao trabalho, etc. O Estatuto, à luz da proteção integral, criou um verdadeiro sistema de garantia de direitos, distribuindo com muita propriedade competências e atribuições entre os agentes do Estado de acordo com suas funções. ” (Daniel Carnio Costa, juiz de direito)

Após 30 anos de implantação do Estatuto os dados estatísticos apresentados pela realidade não são indicadores de que tenha havido eficácia na efetivação das medidas contidas na legislação.

O abuso sexual é prática constantemente denunciada. Em 2019 foram mais de 17.000 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. De acordo com o Ministério da Família, em 73% dos casos o abuso sexual ocorre na casa da própria vítima ou do suspeito e é cometido por pai ou padrasto em 40% das denúncias. O suspeito é do sexo masculino em 87% dos registros. Segundo dados do Fórum de Segurança Pública, entre 2017 e 2018 quatro meninas de até 13 anos são estupradas a cada hora no país. Em 2018, o país também bateu o triste recorde de ocorrências de abuso sexual infantil: 32 mil vítimas. Números que assustam e preocupam.

É sabido que as denúncias sobre abusos contra a infância brasileira vêm de longe.  Em várias regiões do país, 998 mil crianças (PNAD) padecem no trabalho escravo, cumprem jornadas em casas de farinha, em carvoarias, em serviços de carregamento e logística do comércio ambulante, no tráfico de drogas, nas casas de prostituição às margens das estradas e nas periferias urbanas. Muitas delas, sobretudo as meninas, são vendidas ou entregues por suas famílias a homens em troca de favores para a família.

Apesar de contarmos com muitos avanços em algumas políticas, podemos constatar que o fundamental é que a sociedade não compreendeu o valor revolucionário que tem a Lei, e o que expressa através dos novos conceitos, para as novas gerações. A sociedade não conseguiu entender que o ECA incorpora uma nova ordem constitucional cujo objetivo é a construção de uma sociedade mais justa e democrática, num futuro próximo, não fosse a realidade brasileira tão dura e dramática com relação ao tratamento que dispensa à grande maioria das crianças, adolescentes e suas famílias, sobretudo as que vivem em estado de pobreza.

Após 30 anos, a revolução no atendimento dos direitos das crianças e dos adolescentes possibilitada pelo ECA ainda não ocorreu na proporção em que seria possível, sendo o principal desafio o próprio cumprimento da lei.

Houve avanço nas políticas sociais de atendimento, mas muito do que foi iniciado foi se perdendo no tempo.

Nas políticas sociais como saúde, muitas conquistas desde o pré-natal com o programa de saúde da família, valorização do aleitamento materno, vacinação. E na educação, avanços na universalização do acesso, sem a qualidade no processo de aprendizagem.

No decorrer dos 30 anos uma das maiores conquistas foi a efetiva implementação dos Conselhos Tutelares como órgãos de proteção dos direitos de crianças e adolescentes e o entendimento sobre a importância do direito ao convívio familiar e comunitário, resguardando sempre a responsabilidade da família de origem.

As maiores críticas ao ECA se situam na política de atendimento aos adolescentes em conflito com a lei, ou seja, aos que são encaminhados para medidas socioeducativas, sobretudo os privados de liberdade.

Na verdade, fosse o ECA aplicado conforme a sua concepção pelos dirigentes políticos e responsáveis pelas políticas públicas, fossem as famílias protetoras dos seus filhos e o fizessem na forma da solidariedade nele estabelecida, não poderíamos aceitar as estatísticas ora apresentadas.

É preciso e necessário que abandonemos a hipocrisia, os valores e as práticas obscurantistas e nos voltemos ao Estatuto, organizando as nossas vontades e as nossas forças políticas e canalizando o nosso sentimento de indignação para uma prática de atendimento segura e consciente às nossas crianças, à luz do que preconizam o ECA e a Constituição Brasileira.

Assim sendo, morrerão de inanição os obscurantistas, falsos democratas, falsos religiosos mercadores da fé e falsos defensores da vida.

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.