Por uma escola da alteridade e sem violências

Por

Nelino Azevedo de Mendonça*

Em 16.09.2020

O sujeito de desempenho pós-moderno se sente livre por não vivenciar explicitamente qualquer forma de mando ou repressão por instâncias dominadoras externas, pois como empreendedor de si mesmo ele não consegue, a princípio, enxergar essas variantes da violência. No entanto, a violência mais explícita apenas se desloca e assume outras formas. Agora ele já não tem um agente externo que exige obediência e que assume claramente esse papel de opressor.

Nesse sentido, essa violência crescente que brota da sociedade do desempenho e que é mais sutil e “suavizada” é também mais danosa e fatal, pois se expressa através de um alto grau de invisibilidade e, por essa razão, torna-se mais difícil de ser percebida. Por isso, ela é mais eficaz na produção de adoecimentos, que levam a altos índices de depressão, como afirma Byung-Chul Han, em seu livro Topologia da Violência, editado pela Vozes (2017). Lamentavelmente, esse processo sutil de violência vai minando a vida da pessoa, fazendo com que ela perca as suas referências exteriores e concentre toda a carga de responsabilidades por suas dores, perdas e fracassos em si mesma. Esse processo é autorreferente, por isso tem como resultado altos índices de suicídio.

O enfrentamento da violência nos dias atuais exige de todos e todas que se posicionam nessa trincheira a compreensão de que é fundamental entendê-la como violências e que essas violências se modificam com o passar dos tempos. Ou seja, a violência é uma expressão pluralizada, multifacetada e multiforme. Por essa razão, não deve ser combatida e enfrentada sempre da mesma forma e através de métodos tradicionais que se tornaram receituários e procedimentos convencionais. Han (2017) afirma que a violência vai se desenvolvendo historicamente em estágios. Esse desenvolvimento topológico da violência, segundo Han, tem início na era pré-moderna e se caracteriza pela decapitação na sociedade da soberania, passa pela deformação na sociedade disciplinar e pela depressão na sociedade de desempenho (2017, p.10).

A prática da violência explícita de sangue vai se deslocando para uma violência que sai do espaço físico para o espaço psíquico. Ela vai se invisibilizando e se internalizando e isso pode ser percebido desde as formas de violências das quais se serve o terrorismo, quando assume seu modus operandi de maneira subterrânea até os modos da ciberguerra, que age de maneira subcutânea, operando através de vírus. Essas formas de violências são práticas construídas na sociedade moderna e se constituem a partir da negatividade que caracteriza essa sociedade. Pois, apesar de assumir todo um contorno localizado nos espaços intrapsíquicos, subcutâneos, invisíveis e subcomunicativos, ainda estão no domínio da bipolarização do bem e do mal, do inimigo e do amigo (Han, 2017). Essa violência ainda é uma forma endereçada de um ponto para outro. Ainda se caracteriza pela vítima e pelo algoz. Essa prática também se percebe nas técnicas de dominação através de mecanismos que fazem com que o sujeito da obediência vá assumindo em si as formas variadas de domínio, tornando-o refém do sistema, seja através de práticas coercitivas ou até mesmo de formas de naturalização da violência.

Contudo, nesses tempos em que vive o sujeito pós-moderno, que é o sujeito de desempenho, a violência ganha novas formas e age de maneira bem mais sutil e eficiente. O sujeito de desempenho não é explorado por outrem, ele explora a si mesmo, com o agravante de que se percebe num ambiente de total liberdade e autodomínio. Ele não se percebe explorado, saqueado por si mesmo. Ele se positiva, pois a relação bipolarizada entre vítima e algoz é eliminada. Como diz Han, “O sujeito de desempenho explora a si mesmo até chegar a consumir-se totalmente (burnout), e assim há o surgimento da autoagressividade, que vai se intensificando e, não raro, leva ao suicídio” (2017, p.25).

Todo esse processo vai instituindo na sociedade um mapa de violência que se estende por todo o tecido social e se instalada nas estruturas de diversos setores públicos e privados, ampliando-se para as esferas que se ramificam pelos centros e adjacências da sociedade. Dessa maneira, podemos falar de uma macrofísica da violência e de uma microfísica da violência. O mais terrível disso tudo, é que essa estrutura possibilita uma generalização da violência no interior das relações humanas, impondo em vários graus contextos de barbárie que atentam inaceitavelmente contra a vida humana, e inclusive planetária, que ameaçam a condição da dignidade, da democracia e da realização da cidadania. Por essa razão, é urgente repensarmos os processos de formação humana e isso implica repensarmos, consequentemente, o papel da escola nesse processo de formação humana, se pretendemos uma sociedade que faça o enfretamento desse status quo.

Entendo que a educação é um instrumento indispensável no processo de enfrentamento às diversas formas e expressões da violência. Por isso, venho defendendo a instauração de uma escola da alteridade. A alteridade é um valor fundamental para a efetivação de relações e convivências humanas alicerçadas no diálogo, no respeito, na harmonia, na gentileza e no afeto. A escola da alteridade é aquela que se constitui num espaço de formação em que se privilegia o ser humano em sua integralidade, em sua inteireza. Por isso, ela não pode ser apenas a escola da formação técnica, conteudista, disciplinar. Ela deve ser acolhedora, cuidadosa, afetiva. A escola da alteridade é um espaço socioeducativo intercultural acolhedor das diversidades e das diferenças, sustentado pelo princípio da convivência ética.

É exatamente pelo princípio da ética que essa escola fará florescer o compromisso necessário e recíproco de um ser humano pelo outro, condição basilar para a efetivação da alteridade. É essa escola da alteridade que será capaz de fazer o enfrentamento e a superação das diversas formas de violências que vivem incrustadas em seu interior através de pseudopráticas pedagógicas. Será através dessa escola da alteridade que poderemos superar as diversas expressões de violência, sejam elas étnico-raciais, etnocêntricas, de gênero, lgbtfobia, de classe, credo, ideológica ou que expresse qualquer outro tipo de violência explicita ou tácita. Resta então afirmar que se quisermos uma sociedade mais humanizada não temos mais tempo a perder na fazedura dessa escola, essa escola da alteridade.

*Nelino Azevedo de Mendonça é professor, mestre em Educação, membro da Academia Cabense de Letras. Escreve às quartas-feiras.

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