Educação como um bem comum       

Por

Vera Lúcia Braga de Moura*

Em 17.09.2020     

O princípio da educação como um direito humano fundamental que integra outros direitos humanos está embasado em marcos normativos internacionais. O debate internacional sobre desenvolvimento se refere à educação tanto como um direito humano quanto um bem público. Nessa direção, o papel do Estado é bastante representativo em garantir o respeito, o cumprimento e a proteção do direito à educação.  Além de seu papel na oferta da educação a todos e todas, o Estado deve agir como um avalista do direito à educação como veicula a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) nas suas edições: Repensar a Educação – Rumo a um bem comum mundial?

Assim, segundo a UNESCO, o direito à educação, abrangendo os direitos humanos, impõe três categorias ou níveis de obrigações aos Estados-membros: essas obrigações consistem em respeitar, proteger e cumprir a educação. A obrigação de respeitar o direito à educação requer que  evitem tomar medidas que criem dificuldades ou impeçam o direito à educação. A obrigação de proteger necessita que adotem medidas para impedir a interferência de terceiros no aproveitamento do direito à educação. A obrigação de cumprir requer que adotem medidas positivas que permitam as pessoas e comunidades desfrutarem o direito à educação. Considerando essas prerrogativas, têm obrigação de assegurar o direito à educação.

Nessa direção, a perspectiva da educação formal na educação básica é comumente considerada escolarização obrigatória. A maioria dos países no mundo possui uma legislação nacional que determina etapas de escolarização obrigatória.  Então, o princípio do direito à educação básica é irrefutável, assim como o papel do Estado em proteger esse princípio e assegurar a igualdade de oportunidades.

Um aspecto importante nesse contexto da educação como um direito humano, direito de todos, é como esse direito é veiculado nas várias esferas educacionais e como esse acesso é garantido às pessoas. O discurso internacional sobre educação, frequentemente, refere-se à educação como um bem público. O relator especial das Nações Unidas, sobre o Direito à Educação, ressaltou a importância de conservar o interesse social em termos de educação e, simultaneamente, propor o conceito de educação como bem público.

Algumas formas de educação privada, tanto na educação básica quanto na educação pós-básica, cedem cada vez mais espaço para a relação mercadológica e a rentabilidade, desenvolvendo uma agenda por interesses comerciais privados, alterando a natureza da educação, transformando o bem público em um bem de consumo privado, como afirma a UNESCO. A rapidez da transformação dos vínculos na sociedade, sua fluidez e fragilidade dos laços sociais, como discute Zygmunt Bauman nos seus conceitos de sociedade líquida, interferem no Estado e no mercado, gerando impasses. A UNESCO passa a questionar de que forma o princípio central da educação, como um bem público, pode ser preservado no novo contexto mundial.

Verificando essa abordagem da educação como um bem público, registra-se que, na década de 1950, definiam-se bens públicos como aqueles bens que todos desfrutavam em comum, no sentido de que o uso desse bem não reduziria o seu consumo. A teoria de bem público tem início na economia de mercado, segundo a UNESCO, por isso, surgem problemáticas ao se transferir esse conceito para o campo da educação. Nessa reflexão, consideram-se bens públicos como sendo diretamente ligados às políticas públicas estatais.  Comumente, o termo público conduz a erros de interpretação, quando se diz que “bens públicos” seriam bens gerados pelo setor público.  A UNESCO define, em outra direção, bens comuns como aqueles bens que, independentemente de qualquer origem, pública ou privada, caracterizam-se por um destino comum integrado, sendo necessários para a efetivação dos direitos fundamentais de todas as pessoas. O bem comum, nessa perspectiva, coaduna-se como um direito direcionado a toda a humanidade e que seja assegurado a todas as pessoas.

O conceito de bem comum está relacionado a garantias de direitos humanos para todos. Assim, pode-se definir bem comum como “constituído por bens que os seres humanos compartilham intrinsecamente e que comunicam entre si, como valores, virtudes cívicas e um senso de justiça” (UNESCO/Repensar a educação-Rumo a um bem comum mundial? p.84) . O bem comum se caracteriza pela ação solidária, ética, inclusiva, na qual os seres humanos alcançam o seu bem-estar. Pode-se dizer que o bem comum se estabelece pelas relações humanas vivenciadas numa sociedade por meio do esforço coletivo, da ética da alteridade, da compreensão humana, da solidariedade, da visão de interdependência.

Assim, bens comuns compreendem as atividades produtivas socioeconômicas, culturais, históricas, geradas pela humanidade que envolvem à sua produção, bem como aos seus benefícios. Nessa direção, a visão de bem comum permite-nos pelo menos três formas de ultrapassar os limites do conceito de bem público, como indica a UNESCO. Em primeiro lugar, a noção de bem comum vai além do conceito mais instrumental do bem público, em que o bem-estar humano ultrapassa a noção individualista; consequentemente, o bem comum passa a ser visto como inerente às relações humanas vivenciadas em uma sociedade de forma interdependente, em um esforço coletivo. A visão da interdependência é considerada e respeitada nessa abordagem.  A percepção de educação como um bem comum reafirma sua dimensão coletiva como um esforço social e humano compartilhado de forma responsável com o princípio da solidariedade.

Em segundo lugar, pode-se definir o bem comum respeitando a diversidade de contextos, concepções de bem-estar e de vida comum. Dessa forma, cada comunidade terá sua compreensão de bem comum observando as aspirações, visões de mundo, singularidades de cada grupo social. Considerando a diversidade das interpretações culturais e suas singularidades sobre o que constitui um bem comum, as políticas públicas precisam reconhecer essa diversidade de contextos, conceitos de mundo e sistemas de conhecimento e, ao mesmo tempo, respeitar direitos humanos fundamentais, para que não se fragilize o bem-estar humano e possibilite condutas atitudinais inclusivas.

Em terceiro lugar, a visão de bem comum ressalta a importância do processo participativo que educa para a ação coletiva.  Portanto, a educação como um bem comum demanda um processo inclusivo que envolve formulação e implementação de políticas públicas, considerando a efetiva responsabilização com os interesses, necessidades, singularidades que envolvem os seres humanos em dada sociedade. Colocar bens comuns além da dicotomia público-privado implica entender e esperançar outras formas de democracia participativa, que devem ir além das políticas de privatização, sem voltar às formas tradicionais de gestão pública, como ressalta a UNESCO em suas edições Repensar a Educação como um bem comum.

A educação compreendida como um processo de múltiplas aprendizagens, construção e aplicação desses conhecimentos deve ser orientada por princípios e valores sociais que considerem a diversidade humana, suas características identitárias e de grupo social, seus anseios, sonhos e necessidades. Assim, a educação tem uma grande tarefa em potencializar as humanidades das pessoas, na perspectiva de elas assumirem-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, realizador de sonhos, capazes de ter raiva porque capaz de amar, como ensina Paulo Freire em Pedagogia da Autonomia (1999, p.41).

Esse reconhecer-se não exclui o outro. O sentimento de assumirmos as nossas humanidades é extensivo as outras pessoas numa perspectiva inclusiva. Nesse sentindo, a noção de bem comum pode ser construtiva e desenvolver o sentimento de pertencimento, de comunidade humana. A UNESCO ressalta, ainda, que considerar a educação e o conhecimento como bens comuns mundiais pode ser uma abordagem importante e necessária para articular o propósito e a organização da aprendizagem como um esforço coletivo da sociedade em um mundo em constantes mudanças.

Bem, à guisa de finalizar esse texto, fica a proposição para que reflitamos como nós, seres humanos em constantes aprendizagens, em um mundo impermanente, pautado por incertezas, plural, multicultural, podemos desenvolver uma abordagem humanista à educação, por uma escola emancipadora que liberta.

*Vera Lúcia Braga de Moura é professora e doutora em História. Gerente de Políticas Educacionais de Educação Inclusiva, Direitos Humanos e Cidadania. SEDE/ Secretaria de Educação e Esportes do Estado de Pernambuco. Escreve às quintas-feiras.

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