2020, o ano difícil

Por

Mirtes Cordeiro*

Em 07.12.2020

Porque enquanto houver vida, haverá uma luta permanente.

Estamos chegando ao final de um ano que, parece, nem começou.

Não vimos de perto o vaivém de pessoas indo e vindo ao trabalho com a desenvoltura ou a pressa de costume. Não encontramos os estudantes indo para as escolas enchendo as ruas de burburinho em horários costumeiros. Não assistimos a grandes espetáculos no teatro, nem musicais, nem shows nas praças. Não fomos às festas religiosas: da padroeira, em São Paulo; do Círio de Nazaré; à romaria de São Francisco em Canindé, no Ceará e nem revisitamos meu “padim” padre Cícero Romão Batista, em Juazeiro (CE).

No início do ano fomos surpreendidos por uma avalanche viral que comprometeu o rumo da nossa vida, os nossos planos, arrebatou os empregos da grande maioria, as formas de vida, o já combalido cotidiano há muito comprometido pelas crises econômica e ética que atravessamos, já faz tempo.

Com o desconhecimento quase generalizado por parte das entidades científicas sobre a doença, ficamos à mercê dos governos, das instituições, do mercado e sobretudo da nossa consciência com relação às medidas que devemos tomar para preservar o bem maior, a saúde, e manter as formas mínimas necessárias à sobrevivência.

O país que já vinha submetido às diversas banalidades por um governo central, eleito com plataforma abrigada em discurso eivado de ódio, sentimento discriminatório, intolerante e enfrentamento a um “comunismo remoto”, resultado da mente fantasiosa de alguém que se viu frustrado no seu dia de herói, quando foi expulso do Exército brasileiro. Chegar ao poder em 2018 foi uma vitória pírrica.

A primeira grande banalidade do governo foi a negação da ciência, porque significou a banalidade da vida. Travou uma luta com a população assustada pelo medo. Roberto Junquilho, em sua coluna, escreveu: “A indiferença da máquina oficial à marca de 100 mil mortes da Covid-19 faz essa onda negativa parecer coisa natural”.

Hoje, o número de mortos já ultrapassou 176.000.

Estabeleceu uma dicotomia entre economia e saúde e apostou na banalidade da vida que não está relacionada apenas à violência física, tão comum em nosso país.

A banalidade vem se expressando em muitas atitudes e ações institucionais que diminuem a possibilidade de se ter uma vida melhor com garantia dos direitos básicos. Não podemos desvincular a vida dos laços que nos possibilitem navegá-la, como a educação, o conhecimento, a boa saúde, a moradia digna, o lazer, a cultura e muito especialmente o trabalho, através do qual se expressa muito bem a nossa forma de viver e se reproduzir enquanto seres humanos.

Não ter direitos no Brasil, não desenvolver políticas públicas para atendimento aos que delas precisam, tornou-se uma questão banal para os governantes. Se fôssemos analisar os discursos dos candidatos a dirigentes municipais nas últimas eleições, saberíamos do descaso com o qual são tratadas as políticas que são necessárias à vida das pessoas.

A população vai se acostumando. É preciso lembrar que pessoas são sempre seres humanos em desenvolvimento, submetidos ás intempéries da vida. Por isso, a importância da educação como fonte sistemática para a transmissão do conhecimento e superação. “Não existe tal coisa como um processo de educação neutra. Educação ou funciona como um instrumento que é usado para facilitar a integração das gerações na lógica do atual sistema e trazer conformidade com ele, ou ela se torna a “prática da liberdade”, o meio pelo qual homens e mulheres lidam de forma crítica com a realidade e descobrem como participar na transformação do seu mundo”. (Paulo Freire)

Segundo o professor Eiiti Sato, da UNB, “pobreza, por exemplo, praticamente deixou de ser objeto de preocupação não apenas da população em geral, mas até mesmo das autoridades instaladas no poder. As imagens presentes nos noticiários mostrando pessoas vivendo em condições precárias, formando bairros marcados pela sujeira, pela pobreza e sempre sujeitas a enchentes, desmoronamentos e outros desastres, há tempos deixaram de impressionar as autoridades e a audiência em geral. As cenas passaram a ser vistas como simples componentes da realidade sobre a qual ninguém tem culpa ou responsabilidade, nem mesmo as agências oficiais, secretarias e até ministérios, ainda que tenham sido criados com o propósito de “combater as desigualdades sociais”.

A violência comum, que nos aterroriza, é considerada para muitos a causa. Pesquisa nacional do Datafolha de julho de 2019 aponta que 62% da população têm medo da Polícia Militar e 53% temem agressão de policiais civis. Distante da lógica da eficiência deste regime do medo está o dado que aponta que 91% dos entrevistados também temem ser vítima de violência por parte de criminosos, e 81% temem ser assassinados. Ainda segundo a pesquisa, 52% da população têm algum parente ou conhecido vítima de homicídio.

Essa violência já é consequência. Acontece que construímos uma sociedade que banaliza a vida em detrimento da supervalorização das coisas materiais e da ausência do diálogo e da reflexão.

A pandemia do Coronavírus no Brasil não atingiu apenas a saúde dos brasileiros, mas evidenciou a inércia governamental e a incapacidade de fazer funcionar o conjunto de ministérios com suas políticas para os quais foram criados.

As redes sociais se transformaram em armadilhas para a população que se aprisiona aos estímulos discursivos pautados pela falta de conhecimento sobre determinadas questões, e se entregam às ideias exteriorizadas nas redes, pela raiva, intolerância e opressão.

Então, não há como promover a dicotomia entre economia e saúde, ou entre viver e morrer, porque são situações que guardam consequência entre as mesmas.

Já disse o presidente em bom som, utilizando as redes sociais: “todos vão morrer”.

Mas não é disso que se trata. Trata-se de se criar as condições para que o país transcenda esse momento tão aguçado de crises. O governo federal tem a função maior de articular estados e municípios, conforme o espírito do princípio federativo, principio para o desenvolvimento de suas políticas a partir do que diz a Constituição: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; o pluralismo político”.(art.1º)

A Constituição manda cuidar das pessoas, da vida.

Filósofa alemã, judia, Arendt compreendeu a banalidade do mal após sofrer com a perseguição nazista e posteriormente analisar o julgamento de Adolf Eichmann, responsável pela morte de milhares de judeus durante o regime nazista. Chamou a atenção da filósofa, por ocasião do julgamento, o fato de o responsável por tamanha atrocidade ter sido um senhor comum de meia idade, pai de família e burocrata de carreira, cuja motivação maior era executar o que o poder à época esperava dele, “sem traços de perversidade e razão maligna aparentes”.

À banalidade do mal se opõe, hoje, o chamado “esquecimento do bem”, como se a humanidade estivesse possuída definitivamente pelo mal, sem espaços para a bondade. É o que a pensadora húngara Agnes Heller acaba de recordar ao jornalista Guillermo Altares, quando afirma que hoje, com seus quase 90 anos e depois de ter vivido guerras e exílios, de seu pai ter morrido em Auschwitz e de ela ter se salvado junto com sua mãe, a única fé que lhe resta é que, até no meio do pior inferno, continuam existindo “pessoas boas, capazes de ajudar os demais a se salvarem.

Precisamos ficar atentos às atitudes e aos sinais do bem, que geram amor, solidariedade, garantias de vida. Sem esquecer da sobrevivência.

Porque enquanto houver vida, haverá uma luta permanente.

*Mirtes Cordeiro é pedagoga. Escreve às segundas-feiras.

Os textos aqui publicados não refletem necessariamente a opinião do blog Falou e Disse.

Foto destaque: internet